segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Não sei onde estás. Dantes estavas nas margens de todas as folhas. Agora fugiste dos meus cadernos: já não há rabiscos teus a velar a minha escrita.
No início eu abria o guarda-chuva e tu caías de dentro dele. E eu não podia deixar de sorrir. Era o único a sorrir quando começava a chover. Agora ainda que abra e feche o guarda-chuva vezes sem conta – e faço-o com muita frequência – tu não apareces.
Lembro-me quando te escondias dentro dos meus olhos: eu fechava-os e o teu rosto acendia-se. E acendias-me por dentro. Agora fugiste de dentro de mim. Eu olho para dentro, vasculho o meu interior e não encontro nada mais que estrelas e poeira cósmica. Tenho todo o cosmos dentro de mim. Só tu é que não estás. E sabes o que fizeste para que isto acontecesse? Eu digo-te. Nada. Não fizeste nada.

sábado, 20 de setembro de 2008


Veneza
Procuro em vão mensagens tuas nas folhas amarelas caídas à volta das árvores que se despem. Estudo a disposição das folhas no solo, os ângulos que fazem entre si. Não encontro nada que venha de ti. Se calhar também não é através das árvores que me queres falar. Um dia quase desisti de procurar mensagens tuas nas folhas amarelas que se amontoam à volta das árvores que se despem. Até que um ruído suave, que por momentos me fez lembrar as ocasiões em que te acariciava o decote de veludo, me chamou a atenção e ergui os olhos para o alto. Um raio de sol, impiedoso na sua fúria, quase me cegou. Segundos depois reparei que à volta desse feixe de luz descia uma pequena folha amarela que às vezes era quase branca, reflectindo a luz poderosa à volta da qual voejava. E a folha caía com lentidão, muito mais devagar do que seria de esperar. E ainda hoje penso nesse sinal, nessa folha amarela às vezes branca, brincando à volta do raio de luz, cortejando-me e provocando-me em cada volta. Foi nesse dia que não parei de acreditar. E se acaso hoje me quiseres falar, procura-me debaixo das árvores. Debaixo das árvores que se despem.
Vivemos enclausurados dentro de um aquário. E esta água, esta humidade que se me cola ao corpo, este não poder respirar, sufoca-me. Foi no momento que abandonei o ventre materno que para sempre renunciei à água. Então, o que faço aqui? Este ar líquido não me faz bem.
Dizes-me que sonhas com um fast car que te permita fugir daqui para fora. Digo-te que esse bólide está dentro das nossas cabeças. E o desejo de partir também está gravado no meu peito. Largar tudo, T-U-D-O!, e não olhar para trás. É fundamental não olhar para trás.
A Felicidade e a Estabilidade não se conhecem: nem sequer são primos afastados - são eternos estranhos. E urge fugir da Estabilidade, é crucial abandonar e renunciar àquilo que nos é imposto.
Começa já, J-Á!, a falar com desconhecidos e a aceitar coisas de estranhos. É aí que mora a felicidade. Se tens alguma dúvida, dá-me a tua mão, escuta com atenção a música que ecoa repetidamente dentro da minha cabeça (é fácil se encostares o teu ouvido ao meu peito), corre como se não houvesse amanhã e não olhes para trás – NUNCA OLHES PARA TRÁS!

sábado, 6 de setembro de 2008


Amsterdão

Morte de Rimbaud - I

todos os pássaros sossegaram.
as crianças desceram das árvores, guardaram os jogos, recolheram a casa.
levanto a cabeça e deixo a voz deambular por dentro deste silêncio de água e de estrelas.

a noite está próxima.

deixo o corpo escorregar na poeira luminosa.
acendo um cigarro, ponho-me a falar com o meu fantasma.

longe daqui, a cidade enfeitou-se com os seus crimes de néon, com suas traições.
ouço hélices de barcos, motores, quando um rosto esvoaça ao alcance da mão.

a verdade é que passei a vida a fugir, de cidade em cidade, com um sussurro cortante nos lábios.

e atravessei cidades e ruas sem nome, estradas, pontes que ligam uma treva a outra treva.
caminho como sempre caminhei, dentro de mim - rasgando paisagens, sulcando mares, devorando imagens.

o absinto, esse álcool que me permitiu medir o tempo no movimento dos astros

e vi a vida como um barco à deriva. vi esse barco tentar regressar ao porto - mas os portos são olhos enormes que vigiam os oceanos, servem para levarmos o corpo até um deles e morrer.

a noite está próxima.

vejo acenderem-se mãos voláteis, e uma sede de poços e de nomadismo.
sulco a areia que sitia as cidades para trás abandonadas.
abro fendas na memória, e a noite surge com suas cidades queimadas, desertas - e o vento... o vento cintila onde cresce o lobo que me ronda o sono.
estendo a mão, pego no revólver, mas nada acontece.

de nada me serviria inventar outra vez o rio das palavras, de nada me serviria saber a geometria exacta dos cristais, ou redesenhar o corpo e aperfeiçoá-lo.

fico assim, inerte, à beira da noite... olhando o brilho da lua jorrando águas.

o regresso nunca foi possível.
o verdadeiro fugitivo não regressa, não sabe regressar. reduz os continentes a distâncias mentais.
aprende a fala dos outros - e, por cima dele, as constelações vão esboçando o tormentoso destino dos homens.

pressinto uma sombra a envolver-me. ouço músicas... espirais de som subindo aos subúrbios da alma.
e acendo o lume das pirâmides, onde o tempo não foi inventado, e renego a alegria.
não semearei o meu desgosto, por onde passar.
nem as minhas traições.

Al Berto